sexta-feira, 23 de agosto de 2013

A palavra inglesa ‘fairy’ [fada] deriva do francês antigo ‘faerie’ e do latim ‘fata’, referindo-se ao destino, no sentido daquilo que nos está fadado. Mas como não vou falar aqui de destino, seguirei a sugestão de R.J.Stewart, estudioso da tradição do Submundo Celta, do qual a tradição feérica é o ramo principal, e utilizar a designação ‘feérico’ [faery] para este povo, contornando não apenas a idéia das fadas como devas da natureza, mas também a idéia de que se trata apenas de pequenos seres femininos.
Na concepção céltica, os seres feéricos são seres viventes que estão a um passo, a uma mudança de percepção, da humanidade. A tradição feérica, nas palavras de Stewart, “é o fundamento de toda espiritualidade, religião e magia. Assim, se quisermos trabalhar para transformar nosso planeta exaurido e abusado, é uma boa tradição para explorar e o reino feérico é um bom lugar para começar.”
Os irlandeses nos legaram o mais antigo documento que tenta explicar a história arcaica do povoamento de sua ilha. Lemos n’O Livro das Invasões que a quarta e penúltima invasão ocorreu pelos Tuatha Dé Danann, o povo da deusa Dana, que trouxeram consigo a religião, a ciência, a profecia, a magia e os talismãs sagrados. Num trabalho magistral, Peter Vallance, estudioso da tradição celta e exímio contador de histórias, nos relata como os filhos da Deusa Dana vieram para moldar a Terra.
Os filhos da Deusa Dana estavam reunidos para ouvir Bride cantar. Com sua voz celestial, ela cantou de um mundo caótico e aterrador, uma terra envolta em águas escuras e repleta de monstros, que se devoram uns aos outros. Aengus, o mais jovem de todos, pediu para ela parar de cantar deste lugar, tirá-lo de sua mente como se tivesse sido apenas um sonho.
Mas Bride havia ouvido a Terra se lamentar a noite toda, porque havia sonhado com a beleza, com a quietude do amanhecer, com a estrela que brilha antes do nascer do sol e com a música celestial de Bride. E porque a Terra havia sonhado com a beleza, Bride decidiu que iria cobri-la com seu manto. Então alguns dos deuses se dispuseram a ir com ela e limpar um lugar para ela depositar o seu manto.
Levando consigo a Espada da Luz, a Lança da Vitória, o Caldeirão da Plenitude e a Pedra do Destino, eles desceram como uma chuva de estrelas, com o objetivo de construir poder, sabedoria, beleza e generosidade de coração para a Terra.
Olhando para baixo, viram a escuridão que envolvia a Terra. Viram o fundo do abismo, onde a vida torturada nascia, crescia e devorava a si mesma sem misericórdia. Então Nuada, empunhando a Lança da Vitória, desceu como uma chama para a escuridão. Assim como os humanos pisam as uvas, Manannan esmagou os monstros, até estar coberto de restos de carne e osso. Nuada girou a Lança da Vitória em torno si, até ela se tornar uma roda flamejante, cujas chamas e chispas transformavam a escuridão, transformando o sangue em carmesin, em vermelho rosada, em esplendor rubiáceo.
Com o espaço limpo, Bride deitou seu manto sobre a Terra. Ele se espalhou como uma chama prateada, fazendo recuar tudo que estava podre. O manto teria coberto toda a Terra, se Aengus tivesse tido paciência para esperar. Mas ele pisou com os dois pés sobre o manto e a chama prateada transformou-se em névoa, que se ergueu à sua volta. Deliciado, seu riso atraiu os demais, que se juntaram a ele na névoa que envolvia a todos e os fazia parecer figuras fantasmagóricas, como em um sonho.
Então Dagda mergulhou as mãos no Caldeirão da Plenitude e tirou um fogo verde, que ele espalhou num gesto de semear. Ao ver o fogo verde, Aengus juntou-o e deixou que passasse por entre seus dedos, fazendo brilhar todas as cores da luz solar: azul, violeta, amarelo, branco, vermelho.
Enquanto Dagda semeava e Aengus brincava com o fogo verde, Manannan viu os monstros exilados esgueirarem-se na borda do manto de Bride. Ao ver os estranhos olhos vindos da escuridão, ele desembainhou a Espada de Luz e avançou em direção ao caos, fazendo-o retroceder. E uma grande onda ergueu-se no oceano, para cumprimentar a espada. Uma segunda vez ele empunhou a espada e uma segunda onda de luz cristalina e espuma ametista e azul se ergueu para cumprimentar a espada. E uma terceira vez Manannan ergueu a espada e uma terceira onda, lenta, contínua, branca como cristal, se formou e desfez, retornando para o mar.
Então Bride ergueu o manto de névoa prateada e os seres brilhantes viram claramente a Terra em que estavam. Era uma ilha, coberta de grama verde, com suaves colinas, banhada pelas ondas incessantes do mar. E decidiram que esta seria sua casa. Aqui eles viveriam e realizariam belas coisas, para que a terra ficasse feliz. Tomando a Pedra do Destino em suas mãos, Bride a depositou na grama e ela imediatamente afundou na terra. Uma suave música se elevou em volta, criando riachos plenos de água cristalina, que desaguavam em lagos calmos.
Estava criado o reino feérico, o mundo primordial, a natureza da qual nosso mundo natural se desenvolveu. E os Tuatha De Danaan reinaram na Irlanda até o advento da quinta e última invasão pelos Filhos de Mil, quando então se retiraram para o interior da terra, onde permanecem até hoje nas colinas ocas.
Habitando o que é conhecido como o ‘outro mundo’, o povo feérico detém os poderes elementais formadores da terra e para quem o mundo humano é apenas um sonho. “Assumindo invisibilidade, com o poder de a qualquer tempo reaparecer em forma humana perante as crianças dos Filhos de Mil, o Povo da Deusa Dana se tornou o Povo Feérico, os Sidhe [proununcia-se 'xi'] da mitologia e romance irlandeses. Por isto que hoje a Irlanda contém duas raças – uma raça visível que chamamos de celtas e uma raça invisível que chamamos de fadas”, escreve Evan-Wentz.
Também conhecidos como o Bom Povo, os Sidhe são formados por vários grupos ou ordens, distintas umas das outras, mas que funcionam como uma coletividade, mais próximo do funcionamento de uma colméia. Possuem uma inteligência uniforme, que encontra sua expressão máxima na figura da rainha ou do rei de cada ordem, os expoentes das qualidades e poderes inerentes a todo o povo feérico.
Os antigos povos celtas concebiam a vida como existindo em três níveis distintos, integrados e presentes em cada ser. Estes três níveis eram os mundos físico, mental e espiritual. “Nas crenças celtas, a verdadeira visão do espírito só pode ser alcançada quando você encontra a harmonia central de corpo, mente e espírito” afirma McSkimming, pois o espírito não apenas existe em planos superiores, mas existe em tudo.
Quando percebemos estes três mundos entrelaçados, fica mais fácil compreender o conceito de ‘outro mundo’, esta dimensão em que vive o povo feérico, como estando dentro e em volta de nós. Somos parte dele e ele é parte de nós. Precisamos apenas deslocar nossa percepção, para entrar em contato com ele. ”Uma vez que realizamos esta mudança de percepção, toda nossa percepção de outras criaturas viventes também muda”, escreve Stewart em The Living World of Faery [O mundo vivo das Fadas

The Fairy-Faith in Celtic Countries

By W. Y. Evans-Wentz